Luís Quintais
“Encontro poesia na etnografia e
etnografia na poesia.”
Acorda para escrever?
Não. Não sou um escritor compulsivo. Escrevo
por impulso ou por desafio ou por obrigação.
É evidente que sonho, por vezes, em organizar a minha
vida segundo um projecto de escrita. Ideias não me
faltam. Mas não é assim que as coisas se passam.
De resto, prefiro a síntese e a brevidade. Daí
também a minha inclinação pela poesia.
Quero acreditar que todos os poemas são poemas de circunstância,
e que toda a escrita é também pautada pela circunstância,
pelo evento que nos lança de encontro à página.
Assim, escrevo de manhã, de tarde, à noite,
e em qualquer lugar: na rua, por exemplo, quando algo me faz
atentar na ordem ou desordem do mundo. Etnografias, aforismos,
poemas, fragmentos. Gosto do que é estilhaço,
apara, vestígio, sombra.
Gosta de passear pelos corredores de
uma universidade?
Não. Não tenho tempo, e assustam-me as instituições.
Oiço as 6 Suites de Bach no meu gabinete de trabalho
no departamento. Elas transbordam para os corredores. Colegas,
amigos, alunos agradecem. A mim dão-me a impressão
de que estou num espaço habitável, seguro, respirável.
As fronteiras invisíveis que as Suites fazem (o seu
espaço interior) são a minha casa, o meu refúgio.
Evito aventurar-me para lá das móveis fronteiras
que as suites desenham.
A actividade poética é
uma transpiração da sua actividade académica
ou é antes um motor?
Nem uma coisa nem outra, ainda que reconheça que a
minha actividade
enquanto antropólogo e etnógrafo alimenta a
escrita dos poemas, e que certo tipo de enunciados e proposições
que provêm da poesia alimentam seriamente o meu trabalho
de investigação e de escrita "demonstrativa",
a usar uma expressão de um amigo também antropólogo
e escritor, o Ruy Duarte de Carvalho. Seja como for, aquilo
que faço enquanto antropólogo e etnógrafo
não anda muito longe do que faço enquanto escritor
de livros de poesia. Pelo menos é este o entendimento
que eu tenho. As etnografias correspondem a um género
literário e contêm uma poética. Mais.
A escrita antropológica é, em muitos aspectos,
apenas uma meta-poética (uma aventura reflexiva)
construída a partir da escrita estritamente etnográfica.
Há pois muito mais continuidade e contiguidade entre
géneros do que se supõe. Eu sou um centauro,
um híbrido. Tudo o que faço depende disso. Onde
está a poesia ou a etnografia? Encontro poesia na etnografia
e etnografia na poesia.
Gosta de ensinar?
Sim, gosto das aulas. Por vezes, é penoso. As minhas
qualidades
performativas sofrem danos irreversíveis passados 45
minutos. Os alunos são evidentemente implacáveis,
e o mundo é um lugar injusto.
Qual a lógica que preside à
arrumação da sua biblioteca?
A lógica desaba quando há mais livros que estantes.
Seja como for, divido os livros por três grandes temas:
ficção, ensaio, poesia. Os de ciências
sociais, antropologia e filosofia estão mais ou menos
arrumados no meu gabinete de trabalho no departamento da FCTUC.
O que procura?
Não asfixiar. O que é não é muito
fácil quando se chega a meio do caminho, como dizia
o Dante.
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