Que características possui o quebra-nozes encontrado, que o distingue dos anteriormente conhecidos?
Em Bossou, na Guiné Conakry identificámos a ferramenta mais complexa de pedra até hoje encontrada para partir nozes; trata-se de um quebra-nozes construído por 4 elementos de pedra (um martelo, uma bigorna, dois calços).
Até à data só tinha sido vista a combinação de 3 elementos: a capacidade e flexibilidade cognitiva necessárias para combinar simultaneamente 5 elementos (4 pedras e uma noz) é maior no caso do quebra-nozes que detectámos, o que indicia que os chimpanzés são capazes de complexificar mais o seu comportamento e a sua tecnologia de percussão do que se pensava antes.
Quais as semelhanças entre estes artefactos e aqueles usados pelos primeiros hominídeos?
O nosso estudo reforça a ideia de que os chimpanzés de Bossou, sendo o único grupo que usa sistematicamente ferramentas móveis de pedra para partir nozes, poderá ser um grupo que age de forma mais próxima àquele que terá sido o nosso ancestral comum, no que diz respeito às origens das primeiras tecnologias, e portanto, são um grupo excepcional que pode servir para obtermos muitas pistas e para compreendermos muitos factores comportamentais que estão por trás da produção e utilização de uma certa ferramenta.
O nosso estudo veio alargar e confirmar que as semelhanças entre as industrias de percussão de chimpanzés e dos primeiros hominineos* são muitas e cada vez mais: 1 - Função de peças: partir nozes (mesma função para chimpanzés e detectada em alguns locais de primeiros hominineos também) 2 - Marcas de uso nas ferramentas que circunscrevem zonas muito restritas de impacto nas peças, como resultado das actividades de percussão e demonstrando que existe uma precisão motora gestual quer em chimpanzés quer em primeiros hominineos. 3 - Não existência de relação entre a função da ferramenta e a forma da ferramenta (para chimpanzés detectámos correlação entre a função da ferramenta e determinadas dimensões, mas não de forma, aliás formas muito diferentes podem servir para a mesma função (martelo/bigorna/calço), se tiverem peso, largura e comprimento adequados. 4 - Diversidade tipológica e tecnológica em colecções de ferramentas contemporâneas, em populações da mesma espécie, mas localizadas em zonas diferentes - Isto pode indicar quer para primatas humanos quer para não humanos: As primeiras tecnologias surgiram em focus simultaneos em locais diversos, evidenciando emergência de culturas diferentes? 5 - Estratégias de exploração de recursos, de matérias-primas: flexíveis, adaptáveis à mudança da oferta de recursos, estratégias que surgem como uma resposta à necessidade de solucionar problemas. 6 - O nosso estudo questiona e reforça a necessidade de reavaliar e estudar algumas colecções de ferramentas de percussão do Plio-Pleistoceno e a sua importância no contexto do estudo e compreensão das tecnologias liticas.
Sabendo que os chimpanzés são os nossos parentes mais próximos e que partilhámos um ancestral comum com eles, é legitimo pressupor que alguns comportamentos que observamos actualmente em habitat natural possam, de alguma forma, corresponder, ao que se poderia ter observado no seio de algumas populações de primeiros hominíneos, dos primeiros utilizadores de ferramentas, há cerca de 2.6 Milhões de Anos.
* Até há alguns anos dizia-se hominídeos e é recente a mudança para hominíneos:
Os estudos genéticos mais recentes, ao reforçarem os dados que indicam um antepassado comum entre Homo (Humanos) e Pan (Chimpanzés) obrigaram a uma revisão da classificação destas espécies no reino animal e da sua árvore filogenética. Nesta proposta de classificação, de Mann e Weiss (um exemplo de 1996 mas há agora um artigo mais recente de 2007), os hominídeos são membros da familía Hominidae, que inclui agora todos os grandes símios: Humanos modernos e extintos, gorilas, chimpanzés e orangutangos. Hominíneo é actualmente um membro da sub-tribo Hominina, que inclui sómente Humanos modernos e os seus antepassados extintos. Os humanos só se encontram agora separados dos chimpanzés ao nível da sub-tribo, tendo sido colocados na mesma família, sub-familia e tribo (os chimpanzés parecem estar mais próximos geneticamente dos humanos do que dos gorilas, por exemplo, daí que partilhem a mesma tribo connosco e não com gorilas ou com orangutangos.
Teoricamente, dentro de 2,5 milhões de anos estes chimpanzés poderão igualar o Homem em complexidade?
A resposta a essa pergunta é extremamente difícil. Começo por relembrar que os Chimpanzés se encontram ameaçados de extinção e, como tal, se nada for feito, não existirá continuidade da espécie, e a sua caminhada evolutiva acabará abruptamente, como terminou para muitos hominíneos, dos quais nós (Homo Sapiens sapiens) somos hoje os únicos representantes. Gostaria de salientar também que o grande desafio científico não é mostrar que os Chimpanzés são tão complexos do ponto de vista cognitivo como o Homem, mas sim perceber as grandes semelhanças e diferenças e procurar descobrir que mecanismos poderão estar na origem do nosso diferente percurso evolutivo que divergiu há cerca de 7 milhões de anos e, no fundo, entender mais sobre o primata Homem actual, já que as muitas semelhanças que nos aproximam fazem com os Chimpanzés sejam, para além de seres extraordinários, uma fonte de conhecimentos e de desenvolvimento para o próprio Homem, a todos os níveis. Estou-me a lembrar do exemplo de algumas plantas medicinais que os chimpanzés utilizam no Uganda e que são agora fonte de estudos e de aplicabilidade na Medicina Humana. A evolução Humana e não Humana acontece por via da selecção natural, mas é certamente imprevisível, e depende muito de factores externos, mudanças climáticas, de recursos alimentares, de habitats, de capacidade de adaptação e grau de especialização da espécies, das pressões selectivas existentes, etc, sendo impossível prever daqui a 2,5 milhões de anos como seriam os descendentes dos actuais chimpanzés. No entanto, os chimpanzés possuem uma complexidade cognitiva extremamente elevada mas que não revelam no mesmo tipo de tarefas que nós humanos revelamos porque a sua vida quotidiana é gerida por factores e prioridades muito diferentes das nossas. Mas estudos em cativeiro, nomeadamente os do Prof. Matsuzawa com o chimpanzé Ayumu, vieram mostrar recentemente que determinada capacidade especifica de memória fotográfica parece estar mais desenvolvida em chimpanzés do que em humanos, dado que até à data nenhum Humano conseguiu ser mais rápido a solucionar as tarefas de computador que Ayumu, mas isto só indica que esta capacidade específica pode ter-se desenvolvido mais em chimpanzés porque o seu habitat lhes exige esta capacidade para que sobrevivam, enquanto os humanos substituíram esta necessidade por tecnologias que executam a mesma tarefa, provavelmente dando lugar e poupando energia para o desenvolvimento de outros mecanismos cognitivos imprescindíveis à nossa sobrevivência actual.
Qual o futuro desta comunidade de chimpanzés, dada a progressiva destruição do seu habitat?
O futuro é incerto mas não se augura, para já, muito feliz. Esta comunidade é um grupo muito reduzido que poderá não ter viabilidade genética se não for encontrada uma forma de solucionar o problema do isolamento e da degradação do habitat devido, sobretudo, às actividades humanas.
Ironicamente, Bossou é um dos poucos locais em que humanos não caçam ou comem estes animais, porque são considerados sagrados ou totem da população local, que é de etnia Manon, portanto animista. No entanto, desde 1997, que se encontra em realização um grande corredor ecológico que liga neste momento a floresta de Bossou à grande floresta dos Montes Nimba, onde ainda há vários grupos de chimpanzés e, em todo o caso, nós esperamos que se em Bossou não existir viabilidade para este grupo, estes chimpanzés possam atravessar este corredor verde e encontrar uma nova casa nessa floresta melhor. Para além do Corredor Verde, um projecto onde todos os investigadores da Equipa internacional Bossou-Nimba colaboram e trabalham arduamente, fazemos também sessões educacionais com as populações locais, com a crianças, na tentativa não só de sensibilizar para as questões da conservação, mas especialmente, tentando arranjar alternativas viáveis aos locais, para que estes possam deixar de explorar intensivamente os recursos florestais.
O que é a inteligência?
Existirão centenas de definições mais "académicas", mas assim de repente, eu diria: É um conjunto de habilidades mentais mensuráveis através da capacidade prática de encontrar soluções eficientes perante problemas, de inovar, de complexificar tarefas relacionando vários elementos, e de planear acções futuras (o que inclui capacidade de abstracção), que dependem de mecanismos cerebrais complexos e da capacidade de adaptação dos indivíduos.
Biografia
Arqueológa de profissão, especializou-se na área da Evolução Humana direccionada para a Primatologia. Dentro desta área dedica-se ao estudo de chimpanzés em habitat natural e à prospecção, escavação e estudo de materiais líticos utilizados por estes primatas não-humanos. Presentemente continua a investigação em evolução humana e comportamento de primatas, e realiza o doutoramento na Universidade de Cambridge, no LCHES, sob orientação do Dr. William C. McGrew, desenvolvendo trabalho de campo em África, com grupos de chimpanzés que utilizam ferramentas de pedra em habitat natural, e em que combina a arqueologia e a primatologia com o objectivo de compreender as origens evolutivas das primeiras tecnologias. O enfoque direcciona-se para o estudo comparativo entre as indústrias líticas utilizadas por chimpanzés e aquelas conhecidas para primeiros hominíneos.
Faz parte da Equipa Internacional do Primate Research Institute da Universidade de Kyoto, para Bossou-Nimba, na República da Guiné e do CIAS, na Universidade de Coimbra e integra vários projectos de investigação, dos quais se destaca o Pounding Tool Working Group Research coordenado pelo Prof. Jack Harris (Museu Nacional do Quénia e Koobi Fora). Finalmente, realiza workshops para público em idade escolar, na área da Evolução Humana, dentro do projecto Ciência Viva “Brincar com a Grande Árvore da Evolução Humana” com o Grupo de Estudos em Evolução Humana.
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