João Coutinho
"Manda o espírito científico
que se mantenha a mente aberta, mas não tanto que o cérebro
tombe pela abertura." Porque
é que as leis da termodinâmica são imutáveis?
Esta talvez não seja a questão correcta. Uma
lei define-se, pode provar-se incorrecta ou de aplicação
restrita e continuará imutável. As leis de Newton,
apesar das suas limitações e de terem sido ultrapassadas
pela relatividade são também imutáveis.
A questão em relação à termodinâmica
é porque é que achamos, como dizia Einstein,
que esta é talvez a única teoria física
de natureza geral que nunca será ultrapassada (note-se
que esta citação não é apócrifa
e pode ser encontrada em Albert Einstein: Philosopher-Scientist,
Paul Schillp ed. na pag. 32 da edição de 1949).
Creio que isto tem a ver com o facto da termodinâmica
assentar em duas leis muito simples: o principio da conservação
da energia (1ª lei) e a degradação contínua
dessa energia através do aumento progressivo da entropia
do universo (2ª lei). A termodinâmica é
a ciência da energia. O conceito da energia nasce com
ela em meados do século XIX e estas duas leis surgem
da tentativa de compreender o funcionamento de máquinas
térmicas, como sejam as máquinas a vapor. Em
cima destas duas leis construiu-se todo um edifício
abstracto bastante complexo mas que é todo ele coerente
como qualquer teoria física que se preze e resulte
da interacção de múltiplos investigadores
em todo o mundo. A solidez da termodinâmica é
tão grande, portanto, quanto a das suas leis básicas.
Estas, surpreendentemente, são leis empíricas
derivadas de uma forma indutiva e não dedutiva. Não
há uma demonstração teórica da
validade de qualquer uma destas leis, o que há são
séculos de tentativas para demonstrar que são
falsas ou de validade limitada e uma resistência tenaz
destas leis a todos os ataques (um dos mais antigos e recorrentes
sendo a tentativa de produzir uma máquina de movimento
perpétuo). Surpreendentemente, foram das únicas
leis da física clássica a resistir à
relatividade e à física quântica mantendo-se
válidas mesmo nestes extremos onde por vezes o senso
comum mostra as suas limitações. Chegaremos
um dia a aquecer as mãos com gelo? Manda o espírito
científico que se mantenha a mente aberta, mas não
tanto que o cérebro tombe pela abertura. Entretanto,
o Universo continua a envelhecer de uma forma airosa, aumentando
a entropia mas mantendo a energia. Quantos de nós poderão
dizer o mesmo?
Quais as analogias entre o funcionamento
de um motor de combustão e o nosso corpo?
Lavoisier foi o primeiro a compreender que uma combustão
não era senão a reacção entre
uma substância combustível e o oxigénio
com formação do óxido respectivo e libertação
de energia. Foi também o primeiro, em colaboração
com Laplace, a desenvolver equipamentos para medir o calor
libertado nessas reacções, os calorímetros.
Teve também a intuição genial de que
o que se passava a nível de uma organismo não
era mais do que um lento processo de combustão e em
colaboração com alguém cujo nome, como
diria Cervantes, não queremos recordar, testar essa
hipótese em experiências que foram imortalizadas
nas aguarelas de Marie Anne Lavoisier. Temos portanto esta
ideia básica, com mais de 200 anos, de que a fonte
de energia do nosso organismo é uma combustão
controlada de alimentos (em particular dos hidratos de carbono)
com libertação de CO2 e H2O. A quantidade de
energia dissipada por dia é, como se sabe, de cerca
de 2000 calorias, ou em linguagem mais científica 2000
Kcal, aproximadamente 8 MJ. Para se ter uma noção
da quantidade de calor pense-se que para levar um litro de
água da temperatura ambiente à ebulição
necessitamos de 75 Kcal. A energia que a combustão
que se processa no nosso organismo liberta todos os dias permitiria
assim levar à ebulição 5 garrafões
de 5 L de água cada. A nossa potência de aquecimento
é semelhante à de uma lâmpada de 100 W.
A semelhança com um motor de combustão ou uma
qualquer máquina térmica são óbvias,
ambos obtêm a sua energia a partir de uma reacção
de combustão. Um queimando hidratos de carbono e outro
hidrocarbonetos, ambos produzindo CO2 e H2O. As semelhanças
terminam aqui porque a maneira como a energia é usada
em cada um dos casos difere já de forma substancial.
Quais as vantagens do petróleo
como fonte de energia?
A sua disponibilidade; podemos pensar que é um recurso
finito mas as quantidades disponíveis têm sido
e continuam a ser gigantescas. O seu baixo custo; apesar da
alta actual o preço da energia e matérias-primas
derivadas do petróleo, continua a ser tão baixo
que torna difícil o desenvolvimento de alternativas
energéticas, como matérias-primas para substitutos
de polímeros, por exemplo. A facilidade de transporte
e exploração que lhe é conferido por
ser um líquido. Temos reservas de combustíveis
fósseis de dimensões gigantescas no estado sólido
(areias betuminosas e carvão) e gasoso (gás
natural) mas cuja exploração e transporte é
significativamente mais difícil e dispendiosa. A sua
complexidade, que permite que de uma única fonte de
matérias-primas se retire uma diversidade imensa de
compostos que estão já aí naturalmente
disponíveis ou que podem ser obtidos a partir dele
com pequeno esforço. A enorme densidade energética;
não há muitas substâncias que disponham
de tanta energia concentrada num pequeno volume. Terá
os seus pontos fracos mas as vantagens são imensas...
E, já agora, se a origem abiogénica do petróleo,
ou pelo menos de parte dele, fosse verdade? E se afinal o
petróleo fosse uma fonte de energia renovável?
Em que consiste o sangue artificial?
O sangue, conforme nos lembram imensas campanhas ao longo
do ano, é um bem escasso e perecível. Os múltiplos
tipos de sangue e as doenças contagiosas só
vieram agudizar uma solução de si já
muito difícil. Isto sem esquecer problemas de ordem
ética ou religiosa. Em situações de crise,
como um acidente ou cirurgia, não necessitamos forçosamente
de um fluido a circular no nosso organismo que desempenhe
todas as funções do sangue mas apenas algo que
possa temporariamente proceder à oxigenação
dos tecidos; em suma, necessitamos de um vector de oxigénio
e nada mais. Isso pode ser conseguido através de outras
substâncias que não a hemoglobina natural. Há
várias abordagens ao problema de conseguir um fluido
para oxigenação do organismo durante uma crise.
As mais complexas passam por formas modificadas de hemoglobina;
no outro extremo temos a utilização de substâncias
simples mas com uma grande capacidade de solubilização
do oxigénio. É sobre estas, em particular sobre
os perfluorocarbonetos, que o meu grupo de investigação
tem trabalhado. Os perfluorocarbonetos são substâncias
análogas aos hidrocarbonetos que constituem o petróleo
mas em que os átomos de hidrogénio foram substituídos
por átomos de flúor. Têm uma capacidade
de dissolver oxigénio tão elevada que é
possível respirá-los como se respira ar. Chama-se
a isto ventilação líquida e é
praticada em prematuros com o sistema respiratório
ainda insuficientemente desenvolvido. No organismo, são
injectados sobre a forma de uma emulsão aquosa. Como
já deve ter ficado claro, a ideia não é
andar por aí com o sangue substituído por estes
compostos mas que numa situação pontual se possa
fazer a oxigenação do organismo utilizando estes
compostos artificiais que não têm nenhuma das
limitações apontadas acima para o sangue natural.
Como é que se manifesta o vício
da leitura em si?
Por uma necessidade física de ler. Sou daqueles leitores
compulsivos que à falta de um livro lêem qualquer
coisa que esteja ao alcance, nem que seja uma lista telefónica.
Tenho que ter sempre um livro por perto, leio vários
ao mesmo tempo e vou alternando com a variação
dos meus humores diária; numa viagem levo sempre vários
atrás, salvo se vou para um sítio que já
conheço, onde sei que me vou deixar embarcar numa orgia
aquisitiva, ficando com material suficiente para toda a estadia
como acontece quando visito Paris, Londres ou o Rio de Janeiro.
Visito livrarias como quem visita velhos amigos. Nestas alturas
acabo sempre a arrastar para casa umas dezenas de volumes
até ao limite de capacidade das malas e frequentemente
com mais de metade das aquisições já
lidas e prontas a tomar o seu lugar na estante da biblioteca
lá de casa.
O que o levou a ser investigador?
O acaso, o desejo de conhecimento, um espírito independente
e a necessidade de liberdade. A investigação
não foi algo que procurei activamente como percurso
de vida. Foi uma oportunidade que surgiu no final da minha
licenciatura e que respondia a dois sonhos de juventude relacionados
com o petróleo e a termodinâmica, num momento
em que a minha perspectiva era seguir uma carreira tradicional
dentro da engenharia, envolvendo-me com a gestão. Aqui,
o desejo de saber mais, de acumular e construir conhecimento
e de cumprir um sonho foi mais forte, foi o princípio
do prazer a sobrepor-se ao da realidade. No final do doutoramento
continuava a perspectivar uma carreira numa empresa, à
semelhança dos meus colegas que iam terminando o doutoramento,
e não uma carreira universitária de investigador,
daqui a minha ida para o Instituto Francês do Petróleo
que tomei como uma porta para o mundo empresarial. O trabalho
no IFP, no entanto, ensinou-me que eu gostava demasiado de
ser independente, de traçar o rumo dos meus passos
e seguir o meu próprio caminho (o meu grupo de investigação
chama-se PATH) para aceitar ordens ou ser confinado aos estreitos
limites de um projecto ou dos resultados a serem alcançados
segundo uma direcção preestabelecida. Trabalhar
numa instituição como o IFP acabou por me fazer
descobrir que a minha verdadeira vocação, nesta
altura da minha vida, era a de investigador universitário.
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