Ricardo Azevedo
“O sexo tem que ter as suas compensações
evolutivas.”
Que vantagens ofereceu
o sexo quando apareceu?
Esta é uma pergunta difícil de responder porque
a recombinação genética, o mecanismo
essencial da reprodução sexuada e que permite
aos organismos incorporar material genético estranho,
evoluiu há cerca de três mil milhões de
anos e deixou poucos vestígios nos organismos actuais.
Porque é que um peixe prescinde
de uma bicicleta?
Calculo que esta pergunta críptica se refere ao aforismo
feminista de autoria incerta segundo o qual uma mulher precisa
dum homem como um peixe precisa duma bicicleta. Ou seja, pergunta-se
que razão pode levar um organismo a prescindir da reprodução
sexuada. Esta pergunta está relacionada com a anterior,
mas é mais fácil de abordar porque encontramos
à nossa volta vários exemplos de organismos
que, por assim dizer, perderam interesse pelo sexo. Só
em animais, ocorreu várias vezes, em insectos, crustáceos,
rotíferos, peixes, anfíbios, répteis,
etc. Acontece que, à primeira vista, a assexualidade
tem várias vantagens sobre o sexo. Por exemplo, organismos
assexuados não perdem tempo a procurar parceiros, nem
se arriscam a contrair doenças sexualmente transmissíveis.
E existe o chamado "custo duplo" do sexo, a observação
de que uma população assexuada composta inteiramente
de fêmeas capazes de produzir outras fêmeas directamente,
teria uma taxa de crescimento per capita dupla da de uma população
sexuada composta por machos e fêmeas. Ou seja, espera-se
que, em competição directa, uma população
assexuada seja capaz de substituir uma população
sexuada em poucas gerações. Mas o que se observa
contraria esta expectativa. A grande maioria das espécies
assexuadas estudadas até hoje tiveram uma origem relativamente
recente, o que implica que a assexualidade tem dificuldades
em se estabelecer a longo prazo. Por outras palavras, o sexo
tem que ter as suas compensações evolutivas.
A busca das vantagens do sexo tem ocupado os biólogos
evolutivos desde o tempo de Darwin.
Teorias promissoras têm sido propostas ao longo dos
anos. Numa contagem recente, existem mais de 20 teorias em
circulação, várias apoiadas por evidências,
mas poucas mutuamente exclusivas. Mas a situação
não é tão má como se pode inferir
da minha descrição. É que no fundo várias
das teorias são variações sobre uma ideia
proposta há mais de um século pelo biólogo
alemão August Weismann, segundo a qual a vantagem do
sexo é que gera variação, tornando o
funcionamento da selecção natural mais eficiente.
A maior parte das teorias correntes, mas não todas,
limitam-se a articular uma série de mecanismos específicos
capazes de actuar da forma proposta por Weismann. Uma destas
teorias, ou "sub-teorias", dá pelo nome de
hipótese mutacional determinista, e propõe que
populações sexuadas eliminam mutações
desfavoráveis de forma mais eficiente do que as populações
assexuadas. Passei grande parte do último ano a investigar
esta teoria.
O que é que nos impede de nos
tornarmos assexuais outra vez?
Apesar do regresso à assexualidade ser relativamente
fácil em vários grupos de organismos, tal não
acontece no nosso caso específico devido a uma peculiaridade
genética dos mamíferos, chamada "imprinting"
genómico, que consiste numa expressão diferencial
de certos genes consoante são herdados da mãe
ou do pai. Isto implica que uma célula produzida apenas
pela mãe não é viável, uma das
razoes que tornam a clonagem tecnicamente difícil em
humanos. Curiosamente, quando o "imprinting" genómico
foi descoberto, a razão para a sua existência
permaneceu misteriosa até David Haig propor uma explicação
evolutiva. Infelizmente a explicação confirma
mais uma vez os piores receios feministas sobre o conflito
entre os sexos _ mais uma boa razão pela qual não
devemos seguir o exemplo da natureza para estruturar a nossa
sociedade. Segundo Haig, o "imprinting" genómico
resulta do conflito entre a parte do genoma do feto herdada
da mãe e a parte herdada do pai pelos nutrientes disponibilizados
pela mãe.
Do ponto de vista do pai, o feto deveria exigir o máximo
de nutrientes possível, mesmo que isso prejudique a
saúde da mãe. Como é óbvio, este
"cálculo" é contrário aos interesses
da mãe, que preferiria investir no feto de forma mais
modesta, de modo a assegurar a possibilidade de se voltar
a reproduzir no futuro. É importante notar que o conflito
genómico proposto é puramente genético
e portanto inconsciente. Vários exemplos de genes "imprinted"
descobertos confirmam espectacularmente as previsões
de Haig. Por exemplo, o gene Igf2 ("insulin growth factor
2") é expresso apenas no feto e estimula o seu
crescimento. Normalmente, o feto exprime a cópia herdada
do pai, mas não a da mãe. Quando se inactiva
a expressão de Igf2 paterno na placenta em ratos, eles
nascem com cerca de metade do tamanho normal. Esta observação
é consistente com a ideia de Haig, que prevê
que a mãe elimina a expressão do Igf2 para reduzir
a taxa de crescimento do feto.
Estudos recentes sugerem que a teoria de Haig ajuda a explicar
as causas da pré-eclâmpsia, uma complicação
importante da gravidez em humanos.
O design dos seres humanos é
inteligente?
Toda a gente que sofre de dores na coluna ou nos joelhos sabe
que a resposta é não... só se foram desenhados
por ortopedistas! Claro que o nosso design é espectacularmente
complexo em vários aspectos, e que parece intuitivo
que esta complexidade só poderia ser produzida por
outros sistemas complexos. Durante séculos esta intuição
levou muitos a postular a existência dum criador. Mas
tudo mudou quando Darwin demonstrou que sistemas complexos
podem evoluir gradualmente a partir de sistemas mais simples,
através do mecanismo de selecção natural.
Uma das demonstrações mais simples deste fenómeno
é que para todos os supostos exemplos de eficiência,
elegância, perfeição e graça na
natureza, encontramos tantos mais exemplos de dispêndio,
dissimulação, defeito e ferocidade. Os factos
apontam para uma natureza dominada por outras qualidades demasiado
humanas como o conflito, a crueldade, a improvisação,
a tentativa-erro e o desenrascanço.
Quando se fala de robustez nos sistemas
biológicos, qual é o termo de comparação?
Esta é uma excelente pergunta que é frequentemente
ignorada por investigadores nesta área. Em princípio
seria necessário comparar o sistema biológico
em questão com todas as formas alternativas de realizar
a mesma função, o que obviamente é difícil
de fazer na pratica.
Mas a regra geral parece ser que os sistemas biológicos
são realmente robustos perante vários tipos
de perturbações, como as mutações.
Por exemplo, em mais de 90% do genoma humano as mutações
não têm efeitos detectáveis porque caem
em regiões entre genes e sem função aparente
_ o que se costuma chamar de "junk" DNA. Mesmo mutações
que afectam a sequencia dum gene capaz de gerar uma proteína
têm uma probabilidade elevada de não substituir
o aminoácido, ou de substitui-lo por um aminoácido
semelhante. E até mutações que eliminam
completamente a função dum gene podem ter efeitos
insignificantes se existir outro gene capaz de executar a
mesma função. Este tipo de redundância
é muito comum em organismos com genomas longos, como
o nosso.
O problema do termo de comparação é importante
em discussões sobre se a robustez dum sistema evoluiu
por selecção natural, ou surgiu espontaneamente
por auto-organização. Eu inclino-me para a primeira
hipótese. No último ano investiguei esta questão
usando modelos artificiais de organismos, baseados em interacções.
Um dos resultados interessantes que obtivemos é que
a robustez face a mutações pode evoluir como
que por arrasto como resultado da reprodução
sexuada.
Os actores da evolução
forjam o seu próprio caminho?
Esta é uma pergunta fascinante. Ainda é discutível,
mas algumas evidências apontam para uma resposta afirmativa.
Por exemplo, em alguns organismos observa-se que stress ambiental
(por exemplo, um aumento drástico de temperatura),
conduz a um aumento na taxa de mutação ou a
uma diminuição da robustez, o que pode causar
uma maior capacidade de resposta evolutiva. O nosso trabalho
recente sugere mais um exemplo.
Uma das condições necessárias ao funcionamento
da hipótese mutacional determinista, referida anteriormente,
é a existência duma propriedade da arquitectura
genética chamada epistasia negativa. A epistasia negativa
ocorre quando duas mutações desfavoráveis
têm um efeito desproporcionalmente mais grave quando
actuam em conjunto, relativamente aos seus efeitos isolados.
Nas nossas simulações descobrimos que, não
só a robustez face às mutações
aumenta nas populações sexuadas, mas que este
aumento da robustez tem como consequência indirecta
a geração de epistasia negativa. Ou seja, os
nossos resultados sugerem que a reprodução sexuada
se pode auto-sustentar.
Tornamo-nos cada vez mais complexos
ou mais simples?
Em termos evolutivos, isto é, transcendendo o tempo
de vida dum só individuo, a resposta parece apontar
para o primeiro caso. Se olharmos para a história da
vida na terra é obvio que formas mais e mais complexas
foram aparecendo sucessivamente. Olhando só para o
registo fóssil, vemos primeiro bactérias, depois
células
eucarióticas, depois animais, plantas e fungos multicelulares,
etc.
O que é menos claro é se esse processo foi guiado
pela selecção natural porque a complexidade
é intrinsecamente vantajosa, ou se, pelo contrario,
resultou dum processo passivo em que alguns organismos se
tornaram mais simples e outros mais complexos. Esse é
um dos problemas que me ocupa actualmente. Suspeito que a
evolução da complexidade está relacionada
com a evolução da robustez, mas ainda é
cedo para especular em público. |