Tiago Fleming Outeiro
“A existência de vida implica
a existência de morte.”
Porque morrem as células?
A existência de vida implica, necessariamente, a existência
de morte. São processos contíguos e indissociáveis.
As células são a mais pequena unidade de vida,
podendo existir no contexto de um organismo com inúmeras
células (multicelular), ou mesmo individualmente, noutros
tipos de organismos, chamados unicelulares. A informação
genética contida em muitos tipos de células
inclui diversos genes que controlam a morte celular, pelo
que a morte das células não é obrigatoriamente
uma reacção a danos exteriores. A morte celular
pode ser programada, sendo nesses casos uma parte normal da
“vida” das células, sendo neste caso um
“suicídio”, como que num acto de “altruísmo”.
Os diferentes tipos de morte celular têm sido amplamente
estudados em laboratório, pelo que muito é já
conhecido. Mas a verdade é que há ainda muito
para descobrir! As células morrem por variadíssimos
motivos, muitos dos quais são ainda desconhecidos.
No caso de algumas doenças neurodegenerativas, inicialmente
pensou-se que a morte celular, responsável pelos sintomas
clínicos nestas doenças, se devesse à
acumulação de proteínas sob a forma de
agregados. Depois de muitos anos de investigação,
esta visão foi alterada, pensando-se actualmente que
os agregados visíveis ao microscópio representam
um mecanismo protector, e que os causadores da morte celular
sejam espécies intermediárias mais pequenas
e por isso mais difíceis de detectar. Um trabalho que
publicámos recentemente mostrou que certas drogas que
interferem com a formação desses agregados,
promovendo a formação de inclusões de
maiores dimensões em detrimento de outras mais pequenas,
podem ter um efeito benéfico sobre as células.
Qual a relação entre
as doenças neurodegenerativas e o aumento da longevidade
humana?
O aumento da longevidade verificado no século XX, ficou
a dever-se a vários factores importantes, como a melhoria
das condições higiénicas, a descoberta
dos primeiros antibióticos para combater infecções
e outros avanços na medicina, e a uma melhoria generalizada
nas condições de vida. Assim, os limites do
organismo humano começaram a ser postos à prova,
e doenças que não eram comuns, por estarem associadas
com os processos normais de envelhecimento, tornaram-se mais
frequentes. Como exemplos, podemos pensar em certos tipos
de cancro e nas doenças neurodegenerativas. É
importante notar que o maior factor de risco para o aparecimento
de doenças neurodegenerativas é, sem qualquer
dúvida, o envelhecimento.
Que portas abrem à investigação
a aprovação da utilização de células
estaminais em experiências científicas?
Antes de responder a esta questão, convêm explicitar
o que são células estaminais, para que se perceba
a sua importância e potencial utilidade. Células
estaminais são células chamadas indiferenciadas,
que não se especializaram ainda, e que por isso têm
o potencial de darem origem a diversos tipos de células,
com funções muito especificas no organismo.
Existem diferentes tipos de células estaminais, com
maior ou menor capacidade de especialização:
algumas células estaminais podem originar todo e qualquer
tipo de células no organismo, enquanto outras podem
apenas dar origem a apenas alguns tipos de células.
Percebe-se assim que as primeiras despertem um interesse muito
maior, dado o seu potencial. As questões éticas
à volta das células estaminais surgem porque
as células com maior potencial (das que foram descobertas
até ao momento) são as células estaminais
embrionárias, isto é, aquelas que se encontram
em embriões nos primeiros dias de vida. Para se obterem
estas células é necessário destruir os
embriões, e é daí que surge toda a problemática
à volta destas células. Por outro lado, células
estaminais que possam ser retiradas de outros tipos de tecidos
sem implicarem a destruição do organismo, terão
uma aceitação muito maior, por não interferirem
com questões éticas.
Convêm também explicar o que se passa nas doenças
neurodegenerativas, como por exemplo na doença de Alzheimer
ou Parkinson – certos tipos de neurónios (células
nervosas, altamente especializadas e que não são
capazes de se dividirem) morrem, deixando de desempenhar as
funções que lhes competiam. Com a progressão
destas doenças, um número cada vez maior de
neurónios vai sendo perdido, e os sintomas clínicos
vão-se acentuando. Como os neurónios não
são capazes de se dividirem, ao contrário do
que acontece com outros tipos de células no organismo,
não há hipótese de repopular as zonas
onde ocorre a morte destes tipos de células. Assim,
fica mais fácil perceber que as células estaminais
têm um enorme potencial, se conseguirmos produzir, a
partir delas, neurónios idênticos àqueles
que foram sendo perdidos. Há ainda um caminho longo
a percorrer para que se consiga controlar o processo de diferenciação
das células estaminais de forma a produzir certos tipos
de células neuronais, extremamente especializadas.
Será muito importante prosseguir o estudo das células
estaminais, para que eventualmente possam vir a ser utilizadas
no tratamento de diversas doenças em que ocorra morte
celular, como as doenças neurodegenerativas. Mas as
células estaminais podem ter muitas outras aplicações
médicas, pelo que muitas portas se abrirão pelo
estudo destas células.
Podemos conter as doenças neurodegenerativas?
Penso que um dia a ciência permitirá prever,
evitar, e tratar este tipo de doenças. Não é
possível prever quando isso virá a acontecer,
mas acredito que será possível lá chegarmos.
Neste momento, grande parte dos tratamentos existentes visam,
principalmente, conter os aspectos sintomáticos, e
muito debilitantes destas doenças. Será importante
um dia sermos capazes de prever o aparecimento das doenças,
através de testes cada vez mais sensíveis, e
actuar atempadamente para prevenir o seu desenvolvimento e
mesmo reverter os danos já causados.
O pânico sugerido pelos media
em relação ao H5N1 serve os interesses dos laboratórios?
Não penso que seja conveniente especular sobre esses
interesses, ou criar “teorias de conspiração”,
por isso custa-me sequer contemplar essa ideia. Neste momento,
não existem razões para grandes alarmismos.
Compete às autoridades e à sociedade civil terem
uma atitude responsável, evitando o pânico mas
tomando as medidas preventivas necessárias para prevenir
uma indesejável pandemia.
O seu comprometimento com o estudo
das doenças neurodegenerativas é essencialmente
académico, ou preocupam-no realmente o bem-estar das
pessoas?
Para mim não faz sentido estudar qualquer doença
sem ter em mente que se trata de um problema real, que afecta
seres humanos, e que um dia nos pode afectar a nós
próprios. O meu interesse académico é
muito grande, porque me sinto genuinamente interessado em
perceber os mecanismos moleculares na origem destes problemas.
Desde cedo que senti que gostava de continuar a aprender e
a testar os limites do conhecimento, e a investigação
permite-me estar nessa posição. Mas o trabalho
que faço está intimamente relacionado com problemas
de saúde muito graves, num número crescente
de pessoas. Na minha breve carreira como investigador, tenho
sido contactado por diversos pacientes ou familiares de pacientes,
que me escrevem com uma humildade imensa, na esperança
de que eu os possa ajudar, ou dar novidades pelas quais tanto
anseiam. Estes momentos fazem-nos parar, pensar, e sentir
que não se trata apenas de um estudo académico.
Existe uma responsabilidade real para com estas pessoas, e
para com a sociedade em geral, já que as implicações
deste tipo de doenças vão muito para além
dos pacientes e das suas famílias. Preocupa-me, sem
dúvida, o bem-estar das pessoas, e tenho a esperança
de poder contribuir para que possamos, em conjunto, caminhar
para o desenvolvimento de novas terapêuticas. |