Miguel Constância
“Há um outro “código”
para além do genético - o das histonas.”
A guerra dos sexos começa no
útero?
É uma guerra dos sexos invulgar, que tem como palco
o genoma - uma espécie de jogo de tracção
à corda permanente entre genes paternos e genes maternos....
O “rosto” deste conflito genético é
um fenómeno biológico conhecido como imprinting
genómico. Contrariamente aos restantes, em cerca de
80 genes do genoma dos mamíferos apenas uma das cópias
está activa, a cópia materna ou a cópia
paterna de cada um destes genes permanece silenciosa. Isto
significa que as células sabem distinguir entre a cópia
que veio da mãe da cópia que veio do pai, activando
uma e silenciando a outra. Num grupo destes genes a cópia
parental é silenciada, através de marcas “epigéneticas”,
apenas num órgão especificamente, a placenta
ou o cérebro por exemplo. A maior parte dos genes “imprinted”
tem um papel importante no crescimento fetal e função
cerebral. O curioso é que os genes que produzem proteína
através da cópia paterna são estimuladores
de crescimento fetal, e os genes que utilizam a cópia
materna têm o efeito oposto – daí o jogo
de tracção à corda; o prémio em
causa é a dominância relativamente à extracção
dos recursos maternos.
O que é a Epigenética?
A epigenética, no sentido lato do termo, refere-se
ao estudo das modificações na função
e actividade dos genes que são transmitidas de célula
para célula (herança somática) mas também
de pais para filhos (herança germinal) sem que isso
involva alterações na sequência do ADN.
Como é isso possivel? O ADN e as proteinas estruturais
nas quais o ADN se enrola (histonas) podem ser “marcados”
com a adição de compostos químicos (grupos
metil, acetil, etc). Estas marcas epigéneticas são
fielmente mantidas durante inúmeras divisões
celulares e “imortalizam” o estado de actividade/inactividade
dos genes conferindo por isso “memória”
de identidade celular. É consideravelmente devido à
acção destas marcas epigéneticas que
uma célula do fígado, por exemplo, quando se
divide dará origem a outra célula do figado
e assim sucessivamente. Se as marcas epigéneticas forem
de alguma forma “apagadas” o resultado será
a perda de “memória” celular e consequentemente
da sua identidade funcional – com consequências
graves para o organismo. A importância destas marcas
epigéneticas para o desenvolvimento embrionário,
diferenciação celular, doenças como o
cancro, o uso de células embrionárias totipotenciais
para terapia, etc. torna o seu estudo e caracterização
muito importantes. Da mesma forma que o genoma foi recentemente
catalogado, é de esperar que num futuro próximo
um esforço semelhante seja feito para catalogar todas
as marcas epigéneticas no genoma – o “epigenoma”.
Porque é que a luta entre genes
é diferente nos mamíferos e nos outros animais?
A luta entre genes representada pelo imprinting genómico
só existe, tanto quanto sabemos, em mamíferos
placentares. A batalha trava-se pela dominância relativamente
aos recursos maternos (i.e. nutrientes que passam da mãe
para o feto através da placenta, o leite durante a
amamentação). Os genes paternos são egoístas
e parasíticos, interessados na robustez física
e crescimento dos seus portadores; certos genes maternos têm
uma função antagónica à dos genes
paternos – é do “interesse” materno
distribuir os recursos equitativamente pelos filhos para poder
investir na reprodução futura. Consequentemente
as pressões selectivas que levam estes genes a serem
regulados por imprinting genómico só
existem nos organismos onde existe uma comunicação
“aberta” entre embrião e mãe, nomeadamente
a placenta.
Até que ponto há um elo
entre variação genética e saúde?
O elo existe e é reconhecidamente importante. Determinadas
variantes normais na sequência de ADN (a que chamamos
polimorfismos), e que se encontram para variados genes, estão
associadas com um risco aumentado em contrair doenças
crónicas ou cancros; outras variantes resultam em diferentes
sensibilidades de resposta a fármacos. Os mecanismos
pelos quais variação genética normal
causa estes efeitos são, em muitos casos, desconhecidos;
há certamente casos descritos de polimorfismos genéticos
que estão relacionados com níveis diferentes
de expressão de certos genes que causam doenças.
Ou seja, produzir mais, menos ou proteína alterada
pode ter consequências a curto, médio ou longo
prazo.
Como são acauteladas in
utero as condições de vida expectáveis
após o parto?
O embrião certamente que faz adaptações
fisiológicas às condições que
encontra no útero. Essas adaptações serão
benéficas se as condições de vida após
o parto forem semelhantes às intra-uterinas. O problema
põe-se quando o embrião recebe a previsão
“meteorológica” errada por parte da mãe
– as modificações fisiológicas
que têm lugar durante a vida fetal são permanentes
e por vezes entram em conflito com as condições
ambientais pós-parto. O resultado desta programação
fetal assíncrona pode ser, por exemplo, o aumento do
risco em contrair doenças crónicas como o diabetes
tipo 2 e doenças cardiovasculares. A nossa saúde
como adultos é de certo modo determinada pelos eventos
intra-uterinos.
Como é que se pode construir
um organismo tão complexo como o Homem com um número
relativamente tão pequeno de genes?
Antes da sequenciação do genoma humano estar
completa as estimativas do número de genes cifravam-se
nas centenas de milhar. Hoje, sabemos que existem cerca de
30.000. Certamente que existe um outro nível de complexidade,
que transcende o genoma e que estamos ainda longe de decifrar.
Acho que parte desta complexidade pode ser explicada pela
Epigenética, as tais modificações de
histonas e metilação de DNA que controlam a
actividade dos genes. Por exemplo, há quem fale de
um outro “código” para além do genético
- o das histonas - e cujos segredos se desvendam lentamente....
Existe um número extraordinariamente vasto de diferentes
combinações de modificações químicas
que podem ocorrer em diferentes resíduos das caudas
das histonas, com presumíveis efeitos na regulação
dos genes, e se calhar não só... A Epigenética
assume-se pois como um dos principais protagonistas na “interpretação”
do genoma e constitui por isso uma nova fronteira na investigação
biomédica. Vou mais longe.... estou em crer que a Epigenética
irá marcar os próximos 50 anos da investigação
biomédica! |