Pedro Granja
“O Homem-Máquina parece-me
algo dificilmente aceitável pelas nossas sociedades
actuais.”
Qual o grau de ficção/realidade
do conceito de Homem Biónico?
A origem da palavra Biónica resulta da união
entre as palavras biologia e electrónica,
e Biónica pode ser definida como a substituição
ou melhoramento de estruturas anatómicas ou processos
fisiológicos por componentes electrónicos ou
mecânicos. A investigação nesta área
pretende restaurar e/ou melhorar as funções
sensoriais, motoras e neuronais humanas, que podem degenerar
devido ao envelhecimento, a lesões, a doenças
genéticas, entre outras razões.
Actualmente, A Biónica está associada a algo
mais vasto do que a concepção que geralmente
temos do “Homem de 6 Milhões de Dólares”,
da série que se popularizou nos anos 70, ou até
dos ciborgues (ser composto de um parte viva e de uma parte
artificial) tão conhecidos de todos como o “Exterminador”.
Hoje em dia há já várias formas possíveis
de tornar isso possível, desde a utilização
de próteses externas, passando pelos implantes, ou
recorrendo à medicina regenerativa, através
da indução de processos regenerativos no próprio
organismo.
A substituição de membros no corpo por próteses
externas é uma realidade com que convivemos já
no nosso dia a dia. Os casos mais conhecidos serão
provavelmente as pernas, as mãos e os braços
artificiais. Estes dispositivos atingiram já um grau
de sofisticação elevado, como se comprova observando
os atletas olímpicos com pernas artificias. No caso
destes dispositivos, existe ainda a possibilidade de melhorar
a performance do membro natural, o que nos faz sonhar com
possibilidades fantásticas em termos de superação
das capacidades humanas, mas também nos faz temer diversos
malefícios, tais como o uso militar destes dispositivos.
Menos conhecidas mas igualmente fascinantes, existem ainda
versões experimentais de diversas outras partes do
corpo que prometem revolucionar a medicina actual. Por exemplo,
implantes neuronais que permitam ao indivíduo accionar
máquinas e computadores, ou até comunicar por
telepatia com outros indivíduos dotados do mesmo dispositivo,
ou olhos artificias que permitam ver para alem do visível,
isto é, ver no escuro por exemplo.
Os implantes são outra forma já muito utilizada
de substituir partes do corpo. Estes dispositivos salvam de
facto milhões de vidas em todo o mundo e contribuíram
significativamente para o aumento da esperança de vida
humana. Muitos destes implantes não são vitais
mas proporcionam uma melhoria considerável na qualidade
de vida dos pacientes. Os implantes mais populares são
provavelmente o pacemaker, as próteses da anca e do
joelho, os implantes dentários, as lentes intraoculares,
os implantes mamários, as placas de fixação
óssea, as válvulas cardíacas, os balões
de angioplastia, entre muitos outros. Hoje em dia, dificilmente
alguém chegará ao fim da sua vida sem um destes
dispositivo implantados.
Existe já também produtos obtidos através
da denominada Engenharia de Tecidos, que consiste na forma
mais adequada que hoje em dia possuímos para praticar
a Medicina Regenerativa, que pode definir-se como a tentativa
de induzir o corpo a regenerar-se a si próprio, em
vez de promover a substituição de partes danificadas.
O paradigma da Engenharia de Tecidos consiste em implantar
materiais, células e moléculas bioactivas para
ajudar o corpo a regenerar-se a si próprio. Por exemplo,
há já produtos comerciais utilizando esta tecnologia
para regeneração da pele. Esses produtos consistem
numa estrutura porosa de uma material biodegradável,
que é colonizada por células da pele, antes
da implantação. Idealmente, as células
são do próprio paciente. Após implantação,
o material degrada-se, à medida que as células
contribuem para produzir novo tecido que, por sua vez, irá
substituir a estrutura implantada. Pretende-se assim regenerar
o tecido original, de modo a não haver resquício
do material artificial implantado. Já existem também
no mercado produtos deste género para regeneração
da cartilagem e para preenchimento de defeitos ósseos.
Muito recentemente, foi publicado um ensaio clínico
em que se demonstrou a regeneração de uma bexiga
inteira utilizando esta tecnologia, o que demonstra o enorme
potencial da Engenharia de Tecidos e nos permite também
sonhar com a possibilidade de regenerar outros órgãos
do corpo.
Em resumo, ainda há muita ficção na concepção
popular do Homem Biónico, mas provavelmente a realidade
ultrapassa aquilo que a generalidade das pessoas pensa ser
possível hoje em dia. Provavelmente é já
altura de começarmos a pensar não mais se isso
será possível, mas sim em como utilizar estas
tecnologias para benefício de todos.
Que aplicações pode ter
a engenharia no corpo humano?
A engenharia tem aplicações diversas no corpo
humano. A Engenharia Biomédica, ou Bioengenharia, desenvolve
estratégias (biológicas, de materiais, de processos,
de implantes, de dispositivos e informáticas) visando
a prevenção, o diagnóstico, e o tratamento
de doenças, a reabilitação de pacientes,
e a melhoria da saúde. Sendo uma área muito
vasta e multidisciplinar, e além das aplicações
descritas na questão anterior, envolve diversas outras
áreas com aplicação na medicina, incluindo
bioinstrumentação, biomecânica, sinal
e imagem médicos, reabilitação, entre
outros. Logo, as aplicações não se limitam
a sistemas implantáveis, mas também a sistemas
de apoio às ciências médicas, tais como
técnicas de diagnóstico, incluindo análise
de sinais e imagem médicos.
Acredita que, um dia, a cirurgia prescindirá
do bisturi?
A cirurgia sem bisturi é já uma realidade, como
é do senso geral. Muitas lesões antes consideradas
incuráveis podem hoje em dia ser tratadas graças
a tecnologias como a cirurgia por laser ou por radiação
gama, por exemplo. Estas tecnologias permitem uma maior precisão,
não danificando por isso os tecidos vizinhos à
lesão. O risco de complicações cirúrgicas
é menor, bem como o tempo de recuperação
do paciente, visto que a cirurgia é menos invasiva
do que a técnica tradicional. Por todas essas razões,
penso que haverá uma tendência a recorrer-se
à cirurgia sem bisturi sempre que possível,
aumentando assim as suas aplicações. No entanto,
parece-me que dificilmente se poderá prescindir completamente
do bisturi, pois o sucesso de diversas intervenções
cirúrgicas depende do julgamento e da reacção
in loco do cirurgião.
Qual é a sua ideia para a construção
de um doutoramento europeu em Biomateriais?
A criação de um doutoramento europeu tem como
principal objectivo atribuir uma espécie de selo de
qualidade europeu a doutoramentos realizados ao nível
da excelência, proporcionando assim um valor acrescentado
ao curriculum dos candidatos. Este é um título
adicional ao doutoramento normal que os candidatos obtêm
nos seus próprios países, que garante aos empregadores
um nível de qualidade, experiência e qualificação
estabelecidos internacionalmente, aumentando assim as oportunidades
de emprego e facilitando a mobilidade de profissionais através
da Europa.
Este princípio foi inicialmente proposto pela European
Association for Higher Education in Biotechnology, através
da atribuição de um doutoramento europeu em
biotecnologia. O que nós fizemos foi adaptar esse princípio
às áreas de Biomateriais e Engenharia de Tecidos,
e tornando este doutoramento parte das iniciativas educacionais
da Sociedade Europeia de Biomateriais (ESB), que é
um organismo bem estabelecido e com grande prestígio
internacional. Esta ideia foi inicialmente proposta em 1999
e, após um longo processo de discussão e aperfeiçoamento
de ideias, culmina este ano com a atribuição
dos primeiros diplomas. Diversas outras sociedades científicas
aguardam o resultado desta iniciativa, no sentido de adoptarem
um procedimento semelhante, caso considerem a experiência
da ESB positiva.
A diferença fundamental relativamente a um doutoramento
normal reside na necessidade de o candidato ter que obedecer
a determinados requisitos, nomeadamente: realizar pelo menos
3 meses do seu trabalho no estrangeiro, frequentar determinados
cursos obrigatórios, publicar em revistas internacionais
e apresentar trabalhos em conferências internacionais,
realizar a defesa numa língua estrangeira, e ter um
membro do júri também estrangeiro.
Qual é a sua definição
de Super-Homem?
Excluindo divagações sobre a mente, o meu conceito
actual daquilo a que num futuro próximo poderá
ser denominado de Super-Homem está relacionado com
o que foi discutido acima a propósito do Homem Biónico.
Já é possível substituir diversas partes
do corpo recorrendo a diferentes tecnologias. Todas elas proporcionam
não só a substituição, mas também
o melhoramento das características originais. Por exemplo,
foi demonstrado recentemente ser possível mover um
braço com músculos artificiais, construídos
com polímeros (ou plásticos) electroactivos.
Estes polímeros modificam a sua forma quando lhes é
aplicada uma voltagem. A Engenharia de Tecidos também
tem proporcionado grandes avanços na regeneração
das estruturas musculares naturais. A cibernética,
como é do conhecimento geral, proporciona a substituição
de braços inteiros. Recentemente, um projecto com financiamento
militar demonstrou ser possível um ser humano utilizar
um braço biónico com capacidade muito superior
à de um braço humano normal. Todos estes desenvolvimentos
proporcionam por isso a possibilidade de melhorar as capacidades
humanas, e em particular a força, como neste caso dos
músculos associados aos braços.
Acho mais provável que o desenvolvimento em larga escala
de aplicações conducentes ao “Super-Homem”
resulte de sucessos da Medicina Regenerativa, em que os resultados
de uma intervenção podem ser menos perceptíveis
ao grande público. O Homem-Máquina parece-me
algo dificilmente aceitável pelas nossas sociedades
actuais, pelo menos nos tempos mais próximos.
São fáceis de prever as vantagens da possibilidade
de melhorar as características humanas, tais como auxiliar
diversas tarefas profissionais. Por outro lado, são
igualmente fáceis de prever diversos usos negativos
para esta possibilidade, tais como militares ou criminais.
Mas como alguém uma vez disse, as tecnologias nunca
são boas nem más; o uso que lhes damos é
que pode ser benéfico ou negativo. E esta é
uma área em que este facto é particularmente
importante. Por isso, considero fundamental que estas questões
sejam amplamente discutidas, de modo a desenvolvermos uma
sociedade informada, e por isso capaz de, com base em informação
correcta, tomar as decisões adequadas nas alturas certas.
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