Ricardo Gil-da-Costa
“O antepassado comum entre humanos
e macacos, já possuía as bases neuronais para
o processamento linguístico.”
Quando apareceram as bases neuronais
para a linguagem?
Não é possível actualmente sabermos ao
certo qual o momento exacto do aparecimento das bases neuronais
subjacentes à linguagem. O que podemos afirmar, baseando-nos
nos resultados recentes que publicamos, é a verificação
de que os macacos rhesus, durante o processamento de vocalizações
da sua espécie, apresentam activação
selectiva de áreas cerebrais homólogas às
áreas associadas a processos de representação
conceptual (Gil-da-Costa et al. (2004). Proceedings National
Academy of Sciences, USA. 101: 17516-17521.) e de linguagem
(Gil-da-Costa et al. (2006). Nature Neuroscience, 9, p.1064-1070.)
em humanos. Esta descoberta leva-nos a inferir que, pelo menos,
o antepassado comum entre humanos e estes macacos, que existiu
aproximadamente entre 25 a 30 milhões de anos atrás,
já possuía as bases neuronais que poderão
ter sido recrutadas posteriormente para o processamento linguístico.
O seu estudo aborda apenas a linguagem
oral?
Ao nível dos estímulos utilizados, os estudos
de imagiologia cerebral em macacos que publicamos baseiam-se
apenas em sistemas de comunicação vocal em primatas
não-humanos. Em futuros estudos iremos integrar também
estímulos visuais representativos de diferentes objectos
e eventos, e associados a determinados sons.
Contudo, a rede neuronal que descobrimos ser selectivamente
activada por vocalizações de macaco, engloba,
para além de áreas de córtex auditivo,
áreas de processamento visual, motor, de valência
emocional e envolvidas em processos de decisão. Estes
resultados levam-nos a crer que, tal como em humanos, estímulos
auditivos com significado (i.e. vocalizações)
estão associados a uma vasta rede neuronal que representa
a globalidade do objecto (e/ou evento) associado com o estimulo,
englobando assim as representações associadas
ao dito objecto a nível visual, emocional, etc. Estudos
prévios em humanos demonstram a activação
de uma rede neuronal homóloga independentemente da
modalidade sensorial do estímulo (ou seja, quer seja
a palavra ‘cão’ escrita ou falada, ou o
som de um cão a ladrar ou uma imagem de um cão,
a rede neuronal activada é representativa das múltiplas
características associadas ao conceito de cão,
tanto gerais como ligadas à experiência individual
da pessoa testada).
Em que difere a linguagem no Homem
e nos outros primatas não-humanos?
Não se pode afirmar que exista linguagem per se em
primatas não-humanos. Não há provas da
existência em macaco da capacidade sintáctica
ou de recursão (capacidade de sistematicamente recombinar
um número finito de elementos dando origem a um quase
infinito número de significados) que são características
da linguagem humana. O que parece já existir é
um complexo sistema de representação conceptual
associado à sua comunicação vocal, tendo
a capacidade de, tal como na linguagem humana, associar um
determinado som arbitrário, produzido pelos membros
da mesma espécie, com um significado específico,
sendo assim possível transmitir informação
referencial entre indivíduos da mesma espécie.
Para além disso, descobriu-se que as áreas neuronais
envolvidas no processamento deste sistema de comunicação
‘pre-linguístico’ são homólogas
das áreas envolvidas no processamento linguístico
em humanos.
O genoma descreve a totalidade das
diferenças entre o Homem e os outros animais?
Não, de modo algum. Para além da base e predisposição
genética, tanto o Homem como os outros animais apresentam
uma enorme variedade de adaptações (respostas
comportamentais e fisiológicas) às influências
do meio ambiente que habitam. O ‘resultado final’
fenotipico de um organismo, independentemente da sua espécie,
deriva não só do seu genoma mas também
da interacção e adaptação aos
vários factores evolutivos presentes no meio ambiente.
Como funciona o PET ?
O PET (Tomografia de Emissão de Positrões) é
uma técnica não invasiva de imagiologia cerebral.
São injectados na corrente sanguínea radioisótopos
(moléculas radioactivas), no caso do nosso estudo uma
molécula que, por acoplação, serve como
marcador de oxigénio. O scanner detecta esse marcador
e proporciona-nos uma leitura das áreas de maior consumo
de oxigénio no cérebro durante cada teste. O
aumento do consumo de oxigénio está directamente
associado com o aumento de metabolismo, indicando assim de
forma indirecta o aumento de actividade de uma determinada
área cerebral. Por comparação das várias
condições de teste (no caso do nosso estudo
a comparação de actividade neurofisiológica
durante o processamento de vocalizações de rhesus
e de sons não-biológicos) obtemos os padrões
de actividade cerebral associados a cada tarefa / função.
Porque é mais difícil
aprender uma língua depois dos seis anos de idade?
Esta é sem duvida uma boa pergunta, mas sem uma resposta
fácil. Para além disso, devo admitir que não
é a minha área de especialidade de forma que
outros colegas poderão provavelmente responder melhor.
É talvez importante, de uma forma simplificada, pensarmos
em linguagem dividindo-a em pelo menos três componentes:
a fonética (capacidade de percepção e
produção de sons linguísticos), a semântica
(o significado associado a cada conceito, palavra, etc. utilizado
em linguagem) e a sintaxe (a estrutura organizacional de construção
linguística). A maioria dos estudos efectuados até
hoje indicam a existência de períodos críticos
para a aprendizagem linguística. Isto está geralmente
associado a pelo menos dois factores, um relacionado com a
capacidade de percepção e reprodução
de determinado som (fonética), e outro com o desenvolvimento
cognitivo necessário à aprendizagem e desempenho
linguístico (semântica e sintaxe).
Vários estudos em bebés em fase pré-linguística
demonstram que, fazendo uso do ‘palrear’, estes
tentam imitar os sons que ouvem, produzidos pelas pessoas
em seu redor. Este exercício permite-lhes desenvolver
a percepção, bem como a sua própria capacidade
de reprodução de sons específicos, sendo
essencial para o desenvolvimento de linguagem vocal. Devido
a motivos de desenvolvimento fisiológico há
maior plasticidade para este ‘afinar’ de percepção
e vocalização em bebés e crianças
até aproximadamente aos 3 anos de idade, estendendo-se
ainda pelo menos até por volta dos 6 anos. Isto leva
a que os padrões de articulação vocal
sejam geralmente moldados pela língua materna até
esta altura. Assim, há uma tendência em utilizar
este ‘molde’ da língua materna em línguas
aprendidas posteriormente dificultando uma boa capacidade
de reprodução fonética, mantendo o sotaque
da língua materna e apresentando dificuldade em reproduzir
o da ‘nova’ língua.
Outro factor é o desenvolvimento cognitivo propriamente
dito, associado à linguagem, o desenvolvimento da semântica
e da sintaxe, para o qual, tal como na capacidade de percepção
e reprodução vocal, existem períodos
críticos de aprendizagem, mas neste caso mais alargados,
estendendo-se tipicamente até à adolescência.
O léxico (conjunto de vocabulário) aumenta ao
longo da vida, e a estrutura sintáctica linguística
é também gradualmente aperfeiçoada. Há
sem duvida um desenvolvimento tanto psicológico, como
por exemplo o desenvolvimento de pensamentos mais abstractos,
como neurofisiológico, sendo a socialização
do individúo um elemento fundamental. Alguns estudos
têm relatado crianças que, tendo permanecido
isoladas de contacto humano, e portanto não expostas
a linguagem até à adolescência, não
parecem ter a capacidade de iniciar então a aprendizagem
de linguagem. O que leva mais uma vez à ideia de um
período critico a partir do qual a aprendizagem linguística
já não e possível. Contudo, temos de
considerar nestes casos a enorme disfunção psicológica
que este tipo de isolamento implica, sendo difícil
distinguir exactamente a que se deve cada deficiência
apresentada. Apesar de vários estudos anatómicos
e funcionais nos terem facultado conhecimentos sobre os mecanismos
de aprendizagem e a capacidade de plasticidade cerebral no
que diz respeito a linguagem, o mecanismo fisiológico
subjacente não está ainda completamente determinado.
Estudos presentes e futuros em desordens linguísticas,
acompanhando os pacientes e explorando a capacidade de recuperação
bem como a adaptação neurofisiologica, desde
a infância até à idade adulta, deverão
trazer dados cruciais a esta questão. |