António Pedro Dores
“Crime organizado, refere-se a empresas
legais, semi-legais ou completamente informais.”
A Solidariedade é um valor em
decadência?
A teoria social foi criada, pode-se dizê-lo, para responder
a essa pergunta. E por isso cada sociólogo pode distinguir-se
dos outros pela maneira como responde a esta questão
chave. Para os conservadores ou reaccionários a resposta
é SIM. Para os progressistas ou revolucionários
a resposta é que estamos a construir uma solidariedade
melhor, tipo vermelha, com amanhãs que cantam, ou tipo
Estado Social, cor-de-rosa. A escolha parece ser entre a liberdade
do indivíduo ou a submissão aos interesses colectivos.
Para atingir esses fins ideológicos, os (neo-)liberais
entendem dever dessolidarizar-se com os famintos, os doentes,
os desempregados, e também as crianças e mulheres
do Mundo, que a seus olhos morrem que nem tordos, elas por
boas razões: a produção, o comércio
e os lucros. Para atingir os outros fins ideológicos,
as esquerdas são moralistas apenas na oposição.
Uma vez no poder, mostra-o a União Soviética
de forma radical, qualquer meio justifica não se sabem
bem que fins. Mostra a luta do PT brasileiro que há
riscos ainda presentes.
O capitalismo justifica-se a si mesmo, como temos ouvido a
propósito das guerras por esse mundo, por ser pacífico
e querer apenas que os mercados funcionem, prova cabal do
seu pacifismo. Todavia, morrem milhões de camponeses
e outros são expulsos todos os dias das suas terras
porque os estados mais ricos mantém firmemente os seus
produtos agrícolas subsidiados, desertificando a concorrência
pela execução aleatória de seres humanos
em lugares onde chegam os lixos tóxicos mas não
chegam os alimentos que todos os anos são destruídos
por serem excessivos.
É de Giddens, o mais famoso sociólogo inglês,
a proposta. A realização é de Tony Blair:
radicalismo conservador! Será por isso que a Inglaterra,
nos últimos anos conseguiu ultrapassar Portugal no
número relativo de prisioneiros e, mesmo assim, ainda
se considera o país mais liberal do Mundo? Está
difícil de encontrar uma fórmula.
A solidariedade é uma característica humana
natural. Mas também o é a violência e
o terror, a discriminação e o abuso de poder.
A solidariedade não pode ser analisada isoladamente,
mas num quadro empírico mais geral. A solidariedade
não é eticamente irrepreensível. Nem
sempre é boa notícia, como facilmente se percebe
se evocarmos dramas provocados pelas intromissões aldeãs
na vida uns dos outros, ou se evocarmos as brutalidades inenarráveis
que se passam em infantários, orfanatos ou casas de
saúde, supostamente solidárias.
A transgressão social é
uma das formas de afirmar a nossa existência individual?
Para Durkheim, um dos fundadores da sociologia, a transgressão
é uma das formas elementares da vida religiosa, que
por sua vez é uma das formas elementares de cognição
humana e de manifestação da sociabilidade humana.
O sagrado, segundo o autor clássico, é a transgressão
radical do profano. E vice-versa. Ainda hoje ao Domingo se
diz que tudo deve parar para que o tempo desse dia possa ser
consagrado. Também os tempos festivos – por exemplo,
de forma mais eloquente que noutras festas, o Carnaval –
são tempos de transgressão, a que as diversas
formas de religiosidade oficial procuram acesso. Veja-se o
caso das festas de Sto. António, o Carnaval de Lisboa
com padroeiro católico: manifestações
pagãs em Alfama e casamentos religiosos na Sé.
A transgressão é antes de mais uma forma de
afirmar o compromisso dos transgressores com a sociedade,
realizando eles aquilo que a sociedade deseja, mas por qualquer
razão não pode (ou não se atreve) a fazer.
Isso explica porque, apesar de arguidos, há alguns
candidatos a autarcas que, mesmo contra o parecer dos respectivos
partidos, têm apoio popular e podem mesmo ganhar eleições,
para continuarem a fazer como o povo gosta…
Se a prisão não é
correctiva, o que o seria?
A prisão é correctiva. Mas apenas no sentido
em que fumar é bom. Devia haver uma campanha anti-prisional
como há uma campanha anti-tabágica: faz mal
à saúde. Evidentemente, faz mal à saúde
de quem está preso ou trabalha nas prisões,
dada a carga de perversidade moral com que apanham todos os
dias. Faz mal à saúde pública: sabia
que a origem do maior surto de tuberculose do século
XX na Europa foi uma cadeia lisboeta? Faz mal à saúde
moral, principalmente. Como é possível que se
use o crime para combater o crime? Como é possível
que para combater a pandemia de toxicodependência se
pense em cercar toxicodependentes entre muros altos, para
intimar os outros a não procederem do mesmo modo? Como
é possível que os Tribunais condenem à
prisão os traficantes, se o Estado tolera o mesmo tráfico
nas suas barbas penitenciárias, como nas “lavandarias”
bancárias?
Se os tribunais podem continuar a condenar traficantes sem
se ocuparem do que se passa nas prisões, porque razão
não poderá cada cidadão exigir dos outros
aquilo que efectivamente não está disposto a
cumprir? Não será este um dos principais problemas
políticos do nosso país? E até da civilização
ocidental, neste momento? Não é a isso que se
refere o Presidente da República Jorge Sampaio quando
reclama pelo facto de as leis serem meras sugestões?
Não é disso que sofrem os líderes do
Ocidente quando acusam Saddam Hussein de enganar a comunidade
internacional por esconder armas de destruição
maciça, ao mesmíssimo tempo que mentem aos representados
que os elegeram?
O crime organizado é um comportamento desviante?
O crime tem classe social. De acordo com as últimas
– e perigosas – doutrinas penais (conhecidas por
“direito do inimigo”) há os crimes económicos,
cometidos por empreendedores, que já não são
muitas vezes penalizados com sentenças de prisão
e perante os quais doutrina mais firme deveria ser produzida
para abolir definitivamente a pena de prisão para essa
gente. Há os outros tipos de crime, que podem ser insultos
à autoridade ou andar de transportes públicos
sem pagar ou matar outrem. Para esses crimes a pena de prisão
deveria manter-se a norma. Para os crimes do “inimigo”
– leia-se principalmente os cometidos ou imaginados
por estrangeiros –, como já acontece nos EUA
e está a ser proposto em Inglaterra, a pretexto dos
últimos ataques terroristas, suspender-se-iam os direitos
fundamentais de identidade e de defesa. Por se opor a isto,
em livro, Freitas do Amaral foi acusado de anti-americano.
Para responder directamente à pergunta: comportamento
desviante refere-se a práticas juvenis transgressivas.
Quando são filhos de classes altas ou médias,
são traquinices ou aventuras. Quando são filhos
dos pobres anónimos são indícios de tendências
criminogéneas. Mesmo quando a pessoa é simpática
de se ver e ouvir, há sempre um técnico de reintegração
social disponível para explicar que se trata de uma
vítima de sub-culturas de origem, perigosos substitutos
sociais dos genes, já muito denunciados como recurso
ideológico usado por nazis.
Crime organizado, por seu lado, refere-se a empresas legais,
semi-legais ou completamente informais que trabalham em rede
e servem personagens conhecidas dos telejornais e das revistas
cor-de-rosa. Nada há de desviante no crime organizado.
É uma parte integrante do sistema social em que vivemos.
E que só poderá ser combatido se for identificado
como problema social, o que segundo Maria José Morgado,
não é o caso em Portugal.
O que é que é mais ocultado
sobre a tortura?
O gozo que dá ao público em geral saber que
há instituições que podem torturar pessoas
que o mereçam.
Uma vez aconteceu-me discutir o assunto com um advogado brasileiro,
partidário da alter-globalização, que
tinha sido torturado na cadeia e que era obrigado a proceder
com tácticas de clandestinidade para não ser
apanhado pelos seus inimigos com posições nas
instituições do Estado brasileiro. Coloquei-lhe
a perspectiva de uma sociedade a construir em que a prisão
fosse abolida. Ele ficou muito espantado e perguntou-me: “Os
que me torturaram não vão pagar? Isso não
aceito!”
O público, por sua vez, está disposto a delegar
no sistema de justiça a “racionalização”
da tortura, consoante a avaliação geral que
o sistema possa fazer de cada caso concreto em função
do quadro geral de criminalidade. Essa é uma fonte
líquida de legitimidade dos poderes do Estado moderno,
de resto herança da pré-modernidade. E os que
têm poder para interferir nas decisões –
através dos poderes legislativo, policial, acusatório
e persecutório, do poder de investigação
(ou não) do poder punitivo – fazem-no para proveito
próprio, e também de amigos e conhecidos. Sofrem
as pessoas isoladas neste mundo às nossas mãos
colectivas, com culpa ou sem ela, haja crime ou não.
Umas mãos lavam as outras, como se usa dizer.
Que “outro mundo é
possível”?
A vida das pessoas e das sociedades tem altos e baixos. Na
minha ideia, estamos a passar um momento depressivo. Por isso
me entusiasmo na perspectiva de poder divulgar a mensagem:
“a existência de prisões é vergonhosa
e comprometedora”. Parece-me mais importante isso que
os debates sobre se é o estado ou o privado, se são
os socialistas ou os sociais-democratas, se são os
republicanos se são os democratas, sem menosprezo para
a política. Ao contrário. Só não
percebo como se pode fazer política sem ter uma discussão
séria sobre os sofrimentos directos (e não apenas
os imaginados) que o Estado e as empresas e o público
inflige aos que não se podem defender, muitas vezes
simplesmente inocentes, outras vezes arcando com culpas que
são de outros e também o são, certamente,
de todos nós.
Em Espanha existem organizações que apoiam o
combate pela prevenção da tortura e o governo
definiu isso como uma prioridade. Em Portugal ainda não
aconteceu. Quando acontecer, outro mundo será possível.
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